sábado, 26 de julho de 2008

bruna e o pingolongo

Veio quase que se arrastando do quintal e parou ao me ver deitado no sofá. Estava arrasada. Seu rosto denotava a indignação dos agredidos, a tristeza dos injustiçados e a mágoa dos abandonados. Ficou um momento ali parada. Os olhinhos não aguentaram e as lágrimas brotaram grossas.
Não foi preciso perguntar, pois apenas com o meu olhar ela foi se aproximando e, diante de mim, contou toda aquela lamentável catástrofe; a tragédia da qual fora vítima:
- Vô, o bicho me mordeu.
Um vermelhão enorme na coxa mostrava que não mentia, embora não fosse algo que justificasse tanta dramaticidade. Mas, afinal, um colo na hora certa é sempre um colo.
- Me abraça, Bruna. E me conta quem foi o malvado, cruel, idiota e delinquente inseto canalha que fez isso.
Meio desconfiada com as palavras exageradas e do meu sorriso zombeteiro - murmurou baixinho:
- Foi um pingolongo...
Desatei numa risada só, enquanto ela me olhava com os olhos meio estufadinhos e molhados. Não demorou para que me sentisse um idiota, diante da seriedade dela.
- Desculpe, querida. Não estou rindo da sua dor, não. Estou rindo do seu jeito de falar. Qual foi o bicho que te mordeu, mesmo?
Silêncio. Um silêncio que denunciava minha insensibilidade.
- Vem aqui, deixa o vô beijar sua perna. Beijo de avô não falha, você vai ver.
Pelo vermelho da coxa, resolvi fazer uma interação medicamentosa do beijo com uma pomadinha. E aproveitar a oportunidade para ensinar a palavra certa.
- Não é pingolongo, anjo. Preste atenção e repita bem devagarinho - PER-NI-LON-GO. Entendeu? PER-NI-LON-GO. Eu sei que você consegue.
Gostosa sensação de professor. Ah, se aquele coraçãozinho pudesse ouvir-me a alma. Ela, por sua vez, tentando:
- Pin per... golongo. Pino-lon-go.
- Fala direito, Bru. Depois vou pedir para sua mãe perguntar.
Optou, por fim, pelo novo silêncio. Ganhou outro beijo no rosto e saiu para brincar novamente.
Depois de um tempo voltou feliz e sentou-se em meu colo. Passei a mão na manchinha quase sumida. Era a chance imperdível do esperto homem caderno, o avô lição inesquecível, o livro da vida com pernas:
- Bruna, qual é mesmo o nome do bicho que te mordeu?
Ela abriu um largo sorriso e respondeu vitoriosa:
- Sabe, acho que foi uma aranha, vô...

texto: paulo moreira

quinta-feira, 24 de julho de 2008

marcelino pão e vinho

“Marcelino é um órfão encontrado na porta de um mosteiro e criado por 12 frades. Certo dia, ele oferece, durante sua refeição, um pedaço de pão e um pouco de vinho a uma imagem de madeira de Jesus, que aceita a oferta e passa a conversar com o menino. É o início de uma grande amizade. Aplaudido no Festival de Cannes, onde recebeu uma Menção Honrosa, e vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim, Marcelino Pão & Vinho é um clássico do cinema espanhol.”
***

Uma pequena frase foi o estopim de tudo. Foi o desabafo de uma namorada:
- Você não precisa de uma namorada; você precisa de uma mãe!
Aquilo ficou martelando em minha cabeça dias e dias. Ia para meu quarto e ficava pensando no que ela havia dito. Tinha razão por tudo. Pela minha dependência, pelos caprichos, por nada saber da vida ou de qualquer dificuldade. Aquela frase atingiu-me em cheio, bem no meio do alvo. E tomou conta daqueles dias dos meus vinte e poucos anos.
De tanto olhar a mim mesmo e tentar enxergar a realidade, comecei a perceber que buscava nas memórias e nas sensações a razão daquilo tudo. Até que consegui enxergar. Era transparente como a água. Como não havia visto antes?
A primeira coisa foi ver-me tomando banho. Meu Deus, como eu era ridículo tomando banho. Pela manhã, eram banhos de mais de uma hora antes de ir para o trabalho. O ridículo era a forma como o fazia. Tomava banho de chuveirinho, agachado e curvo, com os braços encolhidos para dentro e com a água quente escorrendo pela boca e pelo corpo. O escuro dos olhos fechados, momento de maior paz e tranqüilidade.
Minha mãe, por vezes, batendo na porta seguidamente para que não perdesse a hora, sem que sequer ouvisse nada. Pura felicidade, puro êxtase.
Para, em seguida, ir para o trabalho com uma agitação sem igual, irritadiço e incomodado com o barulho dos automóveis e com a agitação. Era como se fosse durante todo o trajeto sendo chacoalhado, dirigindo nervoso e inquieto. Frio. Muito frio.
A primeira percepção foi a de posição fetal e logo em seguida a das sensações que, então, tomaram o vulto de lembranças. O grande problema de enxergarmos isso, talvez seja porque no útero materno não haja acontecimentos novos ou diferentes a cada momento. Lembrava-me, lógico, apenas do que os sentidos podiam perceber. A temperatura da água, tal qual o líquido que me envolvia, a escuridão e o som apenas das entranhas de minha mãe. Calor, segurança, proteção.
Difícil assimilar a situação. Mães foram feitas para os filhos saírem e não mais retornarem, afinal de contas.
Nos dias subseqüentes, as lembranças mais e mais claras e as perguntas à minha mãe para tentar confirmá-las. Como as confirmações vinham positivas, as perguntas aumentavam.
- Mãe, por que me chacoalharam tanto, logo que nasci? Por que não abria a mão esquerda?
- Filho, como lembra disso? Depois de duas meninas, você foi o primeiro filho homem e seu pai explodiu de felicidade. Te pegou ainda pelado, enrolou num cobertor e foi te pesar no bar. Você nasceu no final de março – outono – e, três meses depois, no inverno, não conseguia te vestir as luvinhas porque você não abria a mãozinha esquerda de jeito nenhum. Mas, como lembra essas coisas?
Só que eu lembrava muito mais. Lembrava-me tudo - dentro e fora dela. Entendia agora a minha agitação ao sair do útero do meu banho. Meu pai atravessando, comigo enrolado num cobertor, a Rua do Orfanato - onde tinha o bar quase em frente a nossa casa - agitadíssima e cheia de automóveis, barulhos… Todas as cenas de minha vida tornaram-se muito claras.
Com dois anos, brincando no chão do bar, enquanto alguns fregueses me chamavam de Marcelino Pão e Vinho. O apelido era porque, em 1958, o ano em que nasci, o garoto que havia protagonizado o filme estivera no Brasil. Em 1961 o filme era sucesso que passava no cinema ao lado, o Cine Fátima. Todos me achavam muito parecido com o tal Marcelino, um tipo de menino de Deus. Depois, descobri que o tal menino ator (de Pablo para Paulo é um pulinho) havia nascido também num mês de março.
O ator Pablo Calvo Hidalgo nasceu em Madri, em março de 1948 e faleceu em fevereiro de 2000, aos 51 anos de idade, em conseqüência de um derrame cerebral.
Chamavam-me Marcelino Bom Menino, bem diferente daquele, mas também menino. O apelido durou até uns cinco anos. A propósito, ainda não faleci.
Em minha vida, o retorno a situações vivenciadas foi sempre uma constante. Com três para quatro anos já começava a ler e aos quatro escrevia também. Tudo como se, ler e escrever, fosse uma lembrança. Sempre foi assim comigo. Tudo como um filme já visto.
Só de uma coisa não conseguia lembrar. Do momento exato em que havia nascido. Até que num desses esforços de concentração, numa noite estranha, minha mãe entra no quarto e me pega gemendo e sufocado como se alguma coisa me apertasse o corpo todo, o pescoço e, tirasse o fôlego. Os olhos ardendo com a chegada da luz e o alívio do momento passado.
Pronto. Havia lembrado.
Todo esse processo ajudou-me muito na compreensão de mim mesmo. Na visão do mundo e do amor. Os movimentos podendo gerar vida, alegria, trabalho. Dos abraços entre amigos. Do calor vindo dos corpos juntos, nas entranhas de uma mulher e de mim mesmo. Do sentir os seios de uma companheira alimentando meu coração, num ritual misto de sensualidade e apego espiritual. Da necessidade quase compulsiva de querer tocar as pessoas. Do frio nos momentos de solidão; um frio físico, mas também do fundo do espírito. Dessa experiência de perceber a conexão entre meu ser e o universo num sentido mais amplo.
Lembranças de outras vidas vieram depois.
Uma das coisas mais marcantes foi mesmo essa do apelido Marcelino Bom Menino. Por vezes, sinto essa coisa boba. Algo como crer que, tal aquele menino com quem Deus conversava, pudesse ter mãos que curassem, trazendo alívio e afagos. Que, coincidentemente, pudesse ter a mesma sorte. Se não minhas mãos, ao menos, minhas palavras.


texto: paulo moreira

segunda-feira, 21 de julho de 2008

resposta a e-mail sobre cérebro masculino e feminino

O resumo da mensagem recebida é algo assim:
- Deus deu opções. O homem escolheu fazer xixi em pé, enquanto a mulher preferiu ter cérebro...

Certamente, um homem com um mínimo de educação, não envia a uma mulher uma mensagem que a deprecie. Talvez não seja uma atitude considerada inteligente, mas sem dúvidas, é mais humana. O homem de bem, ao contrário, sempre envia uma mensagem que valorize a mulher. Aliás, como toda mulher bem merece.
Sinto, que em tempos atuais, algumas mulheres, até pelo fato de serem tão cultuadas por nós, homens de verdade (em caráter e educação), reajam de maneira tão imprevisível. Chega a ficar claro que, este planeta, ao ver de algumas "mulheres", deveria ser uma exclusividade do sexo feminino. Lamentável atitude. Lamentável brincadeira que a cada dia ganha vulto.
O que deve e vem tendo vulto, ainda bem, é a verdadeira valorização da mulher. Merecida e justa.
Uma mulher, para ser grande, não precisa diminuir seu parceiro de luta e de natureza. As grandes mulheres, antes de tudo, são grandes parceiras e grandes mães dos filhos que geram junto de um escolhido "homem", através de algo chamado "amor"; também uma escolha. Além, é claro de suas virtudes pessoais, tais quais: inteligência, talento e perseverança, bem como, a beleza que caracteriza todas.
De pé, não faço apenas xixi. De pé, me posiciono perante o mundo. De pé, aplaudo toda mulher valorosa. E de joelhos agradeço todos os dias a presença da mais linda criação que Deus fez e de quem me gerou - A mulher.
Penso que Deus acabou dando cérebro a todos. Para usar.
Carinho
Repassando a todos a versão original. Omitindo o recebimento, por questão de respeito. Honestamente e sem trocadilho:
- Esse tipo de coisa, já encheu o saco!
.
texto: paulo moreira

sábado, 19 de julho de 2008

partidas

Não esqueça nunca que os jardins apenas se renovam e que as flores precisam iluminar novos jardins. Talvez por isso, parece-nos que houveram seguidas perdas.
Na verdade, se em nosso coração fez-se inverno aqui - em algum lugar está chegando a primavera. Em tempos de frio é necessário que os corações se abracem para suportá-lo e para que se tenha a alegria de saber que a primavera vai e vem numa sequência sem fim. Assim será para que, em todos os lugares do universo, possam haver flores. Ciclos que podem nos fugir ao entendimento, por ora.
Um dia, certamente, compreenderemos a necessidade de todas as estações para que se faça a eternidade dos planos.
texto: paulo moreira

terça-feira, 15 de julho de 2008

quarta-feira, 9 de julho de 2008

generosidade

No decorrer de nossa vida convivemos com as pessoas e cada uma delas nos traz alguma coisa, algum sentimento.
Existem aquelas que o tempo todo nos dão carinho, amizade e o melhor de si. Por vezes, somos até injustos, pois apesar de lhes querermos bem, passamos a considerar isso uma rotina, algo normal e nem percebemos o real valor de toda essa dedicação. De uma forma ou outra, no entanto, somos sempre gratos pelo seu constante desvelo e carinho.
Existem também aquelas que, por uma razão ou outra, nem sempre nos fazem tanto bem assim e algumas que chegam até a querer nos prejudicar por um motivo qualquer. Quando isso acontece, é como se olhássemos no espelho e víssemos sombras por toda a parte. Machuca-nos a alma e surge a mágoa.
Mas, dentro de todas essas situações, devemos considerar uma coisa:
Essas pessoas que, de maneira deliberada ou não, fazem-nos algo que não consideramos bom, no entanto, nos ensinam muito. São essas situações que nos ensinam a tolerância, a compreensão, a malícia e ensinam também o valor daqueles que nos querem e fazem bem. Das situações difíceis, sempre saímos com uma experiência e uma visão melhor das coisas.
Por essa razão, temos que obrigatoriamente concluir que também são professores em nossas vidas. Temos que admitir que o ser humano, ainda que não queira, mesmo de maneira involuntária, acaba sempre contribuindo para nossa evolução e progresso.
Ou seja, o ser humano é em qualquer circunstância, no mínimo, generoso. E por isso deve ser amado.
Quando percebemos essa verdade, é exatamente o momento de enxergar à nossa volta e saber que entre todos, sem exceção, sempre haverá a oportunidade da luz.
texto: paulo moreira