domingo, 20 de fevereiro de 2011

encontro

Ele chegou de cabeça baixa, olhos no nada. Hora de partir. Levaria a roupa do corpo, os documentos, um cartão de débito, tantas tristezas, decepções, esperas sem fim, indiferenças.
Ela procurou seu olhar e, quando o encontrou, não precisou nada perguntar. Sabia por demais cada sentimento que aquele, um dia seu cúmplice e razão de ser, levava na bagagem.
Por sua vez, naquele segundo em que seus olhares se cruzaram, ele também lia naqueles olhos de água marinha, todas as marcas que a parceira trazia agora em si. Carências, desenganos, cicatrizes.
Naquele momento, os dois estavam como que vendo um lindo filme antigo gravado na memória e que, a cada dia, os torturava em suas sessões intermináveis. As esperanças, os planos, a fusão de dois seres num único. Tudo num tom de marrom guardado. A ventania do tempo lhes havia tirado as folhas. Fizeram-se árvores secas, de galhos nus, geladas pelo mesmo inverno. Não precisavam mais de palavra alguma; apenas sabiam tudo em silêncio. Perguntas ou desabafos, seriam desnecessários.
Momentos únicos não dão a possibilidade de passar um estilete e deixar pedaços para um ou para outro. Segredos, entregas e momentos não são divisíveis, de modo que cada um leve sua parte. Ao contrário, cada parte é o todo. Dois corpos não são dois corpos – são magia.
Um débil aceno com a mão baixa e dirigiu-se com passos leves ao portão - sem olhar para trás.
Lentamente, ela também o acompanhou até a saída e agarrou-se às grades com as lágrimas do desfeito. Vendo-o seguir adiante, puxou levemente o portão atrás de si e também saiu pela rua - sem olhar para trás.
Dias depois alguém os viu, madrugada de lua cheia, numa velha estrada de chão à beira de um lago. Cabelos desgrenhados e roupas úmidas de sereno. Lindos como pura inocência, de mãos dadas; ora cantarolando, ora falando coisas sem nexo. Felizes como nunca se viram algum dia.
Perguntados sobre quem eram e o que faziam, ela olhou para uma inédita verruga no braço e sentiu-a como um broto de nova folha no início da primavera. Com uma aura de luz, falou serena:
- Encontro de desencontros. Plantamos estrelas, sonhos e eternidades.
E seguiram sorridentes e brilhantes - sem olhar para trás.
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texto: paulo moreira
imagem: internet

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

um silêncio recebido por e-mail

No primeiro e-mail, escreveu tudo o que queria dizer no espaço para “assunto”. Mensagem completa:
- Adorei, envie mais
Sorriso feliz; sensação de ter tocado alguém. Faço montagens e formatações de PPS, com alguns textos que escrevo e, uma das coisas mais gostosas, é receber algum e-mail pedindo mais.
Adicionei aos contatos e comecei a enviar novas mensagens. Novas respostas monossilábicas, sempre uma ou duas palavras no “assunto”. Ali, ela já definia tudo: a mensagem, o gostar, os votos de continue assim, os parabéns, etc. Me acostumei com o pouco que muito dizia.
Até que um dia, as palavras minguaram tanto que o e-mail veio sem uma única palavra no assunto, ou melhor, veio: "sem assunto" . Procurei no corpo do e-mail – neca, nadica, coisninhuma.
- Puxa, ela enviou um silêncio dessa vez!
Ri muito da idéia. Detalhe que se esquece fácil, mas o pensamento começou a pipocar sem parar.
Teria sido alguma história que escrevi e que a deixou sem palavras? Mulher abstrata. Será que morri e, distraído como sempre, nem notei? Dizem que a gente morre e fica um tempão de cérebro anestesiado, achando que os que estão em volta estão meio doidinhos. Como quem tivesse cheirado uma carreirinha de pó de crematório. Deus me livre – idéia tonta.
Divertido com a brincadeira, continuei navegando e pensando cada possibilidade com a seriedade de um menino construindo uma pipa.
- Lógico! Quis dizer que a vida dela é uma coisa branca e sem graça. Meus PPS são os lápis de cor de sua existência. A tinta que pinta lindas paisagens e dá vida aos seus sonhos.
Muita pretensão. A chave, certamente está no branco. Branco transmite uma porção de coisas: Paz, esquecimento, pureza de noiva, susto, fígado e estômago ruim. Fígado não – amarelo é que lembra. Devo transmitir-lhe paz, é isso! Casar, acho que não. Quem está assustado não manda e-mail – disca 190. Fígado ruim, além da cor inadequada, só faria alguém enviar e-mail para o SUS. Já sei: amor. O amor é fisicamente branco. Isso porque, em Física, branco são todas as cores juntas. Ninguém discorda que o amor é policolorido. Particularmente, acho que deveria ser vermelho. Leiloca misteriosa!
Descobri pela remetência que o nome dela é Leiloca. Quem seria Leiloca?
Seria Leila, homem burro! Ninguém registra uma criança no cartório com nome de Leiloca. No ginásio fui apaixonado por uma Leila. Parecia uma princesa. Pele muito clara, branquinha... Longos cabelos negros, linda feito a lua e... era um pouquinho gaga. Quantas noites sonhei com seus beijos. Melhor que isso, sonhava que ela me desse um beijo gago – daqueles que não conseguisse terminar nunca. Não ganhei o beijo gago, mas meu coração não sabia se batia ou não quando a via. Meu coração gaguejava por ela. Mas, estava falando da Leiloca de hoje. Real e palpável. Palpável sim, ela existe em algum lugar, de onde envia silêncios.
Uma garota adolescente encantada com minhas crônicas de amor? Fico imaginando um homem maduro como eu, acompanhando o evoluir de uma adolescente, sua vida, seus estudos. Estudante de odontologia tem orgulho e até dorme de branco. Pijama, calça, blusa, jalequinho, calcinha, sutiã. Um teclado de piano na boca, sem os bemóis, claro! (Bemol é a cárie do piano). Ou teria feito curso de auxiliar de enfermagem? Uma médica? E, se for uma professora de medicina aposentada, charmosíssima e delicada senhora no ápice de suas 80 juventudes?
Imagino ser uma linda mulher madura. Inteligente é. Linda também. Esperta. Cheia de curvas e pernas roliças. O pensamento avança:
- Rolando abraçados, numa cama com lençóis e fronhas de cetim branco. Olhares no fundo da alma de cada um. Oceano de paixão, carinho, ternura. Longos orgasmos implosivos e silenciosos. Daqueles que beira a morte ter que calar. O teto branco, girando, girando. Promessas de amor infinito.
De repente, um aperto no coração. Um medo enorme de molhar os lençóis de cetim desarrumados, em razão de um pensamento impossível. Em nossa vida, acontecem as coisas mais absurdas. Mas, por mais cruel ou absurda que seja uma idéia, deve ser considerada:
Ia enviar um e-mail para Patrício Carlos – seu atual namorado - terminando tudo. Começou pelo destinatário; sem querer clicou no Paulo que, por uma dessas ironias do alfabeto, vinha logo abaixo.
Na pressa - ao invés de deletar – clicou em enviar.
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texto: paulo moreira
imagem: photoforum.com

domingo, 6 de fevereiro de 2011

mãos sem perdão

Perdoe minhas mãos.

Certas mãos não sabem o que fazem. Deveriam ser de carinho, mas foram apenas aquelas que deixaram marcas e que sufocaram; que asfixiaram almas. Deveriam amparar e serem guias; no entanto, abandonaram num labirinto.
Perdoe minhas mãos por serem assim.
Apontam e atacam, quando deveriam guardar e ser mãos que trabalham. Antes que alívio, trazem a dor, fazendo de seus afagos, as feridas. Antes que aconchego, fomentam o desespero. Que, ao invés de carregarem um coração, impõem-lhe a mágoa.
Perdoe essas minhas mãos.
Criadas para serem mãos de cura, causam doenças, contaminadas por vírus de desatinos. Mãos descuidadas que não mais recebem – apenas jogam fora. Que preferem um aceno de adeus à alegria de receber na chegada. Mãos de partida. De desengano.
Perdoe a frieza de minhas mãos.
Por saberem que foram feitas para intervir nas discórdias, mas escolhem bater. Por só levarem o alimento à boca que lhes pertence e a ninguém mais. Mãos feitas para plantar, porém, descuidadas, perdem sementes pelo caminho. Que transformam as terras que lhes são dadas ao plantio do amor, em vastos desertos estéreis e de decepção, dos quais subverte as areias, regando-as com lágrimas.
Perdoe-me.
Por não saber usar ou conter as mãos insanas. Por não unir as mãos para uma prece sequer. Por, ao invés de oferecer o anel da aliança, ter amputado a delicadeza dos dedos de sua alma e lhes infligir a paralisia dos gestos.
Perdoe essas mãos setenta vezes.
Por não saberem construir o que puseram abaixo. Pela covardia de não conseguirem por fim em seu próprio desvario e repousarem no peito.

Perdoe essas mãos que não sabem sequer rogar perdão.
texto: paulo moreira
imagem: google
música: chico buarque/mil perdões - powered by: doug-scoth - www.doug-scoth.com