Rodava pela cozinha feito louca. Karina, a filha de três anos, pedindo insistentemente o bolo há muito prometido. Gritava com a menina, que parecia ter uma energia incessante para irritá-la. Há muito tempo esperava alguns minutos de paz, que a filha não parecia disposta a conceder-lhe tão cedo. Meses? Anos?
Afinal, quantas coisas lhe haviam sido prometidas na vida sem que cumprissem? Por que tinha obrigação de fazer aquele bolo para a filha? Por qual razão sempre levava nas costas os pecados do mundo?
Mas, iria fazê-lo sim. Ao menos, Karina lhe daria sossego um pouco.
Olhou desencantada para a cozinha toda cheia de louças por lavar do dia anterior, virada de pernas pro ar. Sua vida com o marido, pensou, era como aquela louça suja.
Afinal, quantas coisas lhe haviam sido prometidas na vida sem que cumprissem? Por que tinha obrigação de fazer aquele bolo para a filha? Por qual razão sempre levava nas costas os pecados do mundo?
Mas, iria fazê-lo sim. Ao menos, Karina lhe daria sossego um pouco.
Olhou desencantada para a cozinha toda cheia de louças por lavar do dia anterior, virada de pernas pro ar. Sua vida com o marido, pensou, era como aquela louça suja.
- Meu Deus, quantas coisas por limpar na vida! Cada dia mais e mais. Como lavar, secar e colocar em ordem a existência? Por enquanto, melhor tentar começar pela louça.
Depressa, Karina a lembra por onde começar.
- Droga, o bolo!
Mistura os ingredientes - farinha, ovos, decepções, pouco açúcar, gotas de tristeza com aroma de baunilha, leite e lágrimas. Por fim, o fermento em pó. Vira-se para a pia, a fim de lavar a grande colher com que mexia tudo e percebe a menina esticando-se toda da cadeira por sobre a mesa para enfiar um dedo na massa.
Num gesto quase que natural aos já distantes de qualquer raciocínio, bate com a colher na mão da filhinha. Com força. Sabe-se lá por qual razão ou desencontro do destino, força suficiente para a mão da menina chorosa inchar muito e, nos dias seguintes, tornar-se mais escura. A pomada não resolvia.
Num certo momento, a porta do médico se abre e, sem que possa atinar com nada, ouve o inacreditável:
- Não há saída, deu gangrena. É preciso amputar.
Quase um ano depois, encontra-se sentada numa cadeira da cozinha fazendo, calada como passara a ser, mais um dos intermináveis bolos que, quase que diariamente, desde o acontecido, fazia para a filha. Karina aproxima-se e vê o semblante triste da mãe, que levanta os olhos cheios de lágrimas, põe a vasilha sobre a mesa e lhe dá um abraço que só um desespero sem fim é capaz de dar.
- Droga, o bolo!
Mistura os ingredientes - farinha, ovos, decepções, pouco açúcar, gotas de tristeza com aroma de baunilha, leite e lágrimas. Por fim, o fermento em pó. Vira-se para a pia, a fim de lavar a grande colher com que mexia tudo e percebe a menina esticando-se toda da cadeira por sobre a mesa para enfiar um dedo na massa.
Num gesto quase que natural aos já distantes de qualquer raciocínio, bate com a colher na mão da filhinha. Com força. Sabe-se lá por qual razão ou desencontro do destino, força suficiente para a mão da menina chorosa inchar muito e, nos dias seguintes, tornar-se mais escura. A pomada não resolvia.
Num certo momento, a porta do médico se abre e, sem que possa atinar com nada, ouve o inacreditável:
- Não há saída, deu gangrena. É preciso amputar.
Quase um ano depois, encontra-se sentada numa cadeira da cozinha fazendo, calada como passara a ser, mais um dos intermináveis bolos que, quase que diariamente, desde o acontecido, fazia para a filha. Karina aproxima-se e vê o semblante triste da mãe, que levanta os olhos cheios de lágrimas, põe a vasilha sobre a mesa e lhe dá um abraço que só um desespero sem fim é capaz de dar.
Com a mão esquerda, a garotinha levanta o avental da mãe, enxuga-lhe a face, e diz carinhosa:
- Não se preocupe querida, não vou mexer mais no bolo.
- Não se preocupe querida, não vou mexer mais no bolo.
Levanta o bracinho com um sorriso de pureza:
- Veja mamãe, eu não tenho mais mãozinha para mexer no bolo.
A história verídica de Karina me foi contada, um dia, por minha mãe, que tentava através de histórias e exemplos, preparar-me para a vida e tornar-me um ser um pouco melhor. Como tantas outras histórias, sempre a carreguei comigo e, cada vez que penso em Karina e sua mãe, as emoções deságuam.
Muitas coisas nos despertam os sentimentos, seguindo-nos por toda a existência mas, uma coisa, outro dia me perturbou muito.
Diante de alguém, senti uma vontade imensa de fazer um afago, um carinho. No entanto, sem saber no momento o porquê, me detive; lembrei-me de tantas coisas vividas por nós juntos e fui rumo à outra direção. Procurava ver meu coração, mas algo nele não mais havia. Meus lábios, tremendo, apenas souberam murmurar:
- Não se preocupe querida, não vou mais mexer...
texto: paulo moreira