Um pequeno som acordou-a. Tinha certeza: havia alguém na sala. Ao tentar cuidadosamente acordar o companheiro, para não causar e nem demonstrar pânico, notou que ele não estava ao seu lado. Suspirou aliviada.
Lembrou-se - haviam feito amor há poucos instantes.
- Foi bom para você também?
- (cabeça cai, como quem concorda)
Cada um virou-se para seu lado e adormeceu. Fazia uns quarenta minutos, deu-se conta. Ele demorava e ela ouvia mais alguns barulhinhos. Vestiu uma roupa, preguiçosa, e foi para a sala ver o que acontecia. Seria alguma dor?
Na sala iluminada apenas pelo abajur, viu o marido já vestido, sentado à mesa de jantar, semi-curvado sobre um papel. Ao seu lado, a pequena mala. O barulho metálico que a acordara era o das chaves do carro que haviam caído.
- Onde você vai? Num baile? Morreu alguém?
- Sim, nosso amor dançou e eu morri. Adeus.
Margô esfregou os olhos e dirigiu-se ao banheiro para lavar o rosto. Só podia estar sonhando. Água no rosto, mesmo em sonho, ajudaria a acordar. Desta vez, não ajudou. O cenário parecia o mesmo. Olha no espelho, vê sua patética figura despenteada e murmura baixo:
- Margareth menina, vai precisar aumentar a fluoxetina. Agora deu para delirar! Vai deitar que amanhã tem aula de história da Profª Margô no Colégio Moreira Drummond!
Retornou para o quarto, deitou-se, beijou e abraçou o marido ao lado. Só então notou que o rosto do marido estava frio e que não costumava ter a lisura e a maciez da fronha de cetim.
- Benhêêêêê...
O Benhê estava na porta do quarto, com a luz por traz a lhe detalhar os contornos. Homem alto, bela postura, elegância e firmeza de gestos. Por anos e anos, ela lembraria daquela imagem, como uma cena surreal.
- Carlos... o que houve?
- Um dia, me dei todo a você. Entreguei meu corpo e minha alma – puros, sem limites. Meu coração te pertence, e sei que não o terei de volta jamais, pois que coração dado não se pode ter de volta. Uma vez entregue, infinitamente entregue.
- Diz isso e vai embora? Onde está o homem que minutos antes dizia ser meu escravo?
- Posso me fazer servo. Ninguém mais o pode.
- Enlouqueceu? Você é o meu amor.
- Sim, sou seu amor e aquele é o seu vaso - na sua sala. Quebre-o e, se puder, suas lembranças também. Fique bem,amor!
- Um pedido, Carlos, apenas isso. Dança aquela música comigo?
Rodaram pela sala fria por horas, beijando-se e abraçando-se com desespero - ao som daquela música caliente.
Saiu na névoa do dia por raiar sem olhar para traz, diante da incrédula Margareth, cuja cabeça girava e girava sem nada entender. Dez anos. Lembra-se do papel na mesa da sala de jantar, imagina uma carta de despedida, mas ao invés disso, descobre a prova de uma sua aluna, sob a luz do abajur:
"... mesmo livres, alguns permaneciam junto a seus senhores, fiéis e agradecidos pelo carinho recebido por aqueles que os tinham por seres humanos. Pela grandeza de seu amor e não por escritura de posse. Permaneciam em seus lares até o fim da vida, trabalhando com dedicação e desvelo. Uma escravidão voluntária e, por isso mesmo, doce escravidão - diziam. Sobre os títulos de propriedade, o tempo deu a resposta..."
Arrasta-se até o quarto e joga-se sobre a cama. Sob efeito dos calmantes, finalmente dorme. Depois de uns breves minutos de sono, acorda assustada outra vez. Feito um Zumbi.Tem novamente a estranha sensação de que barulhos de correntes a acordaram. Do apartamento, parece exalar um cheiro de cafezinho da fazenda.
texto: paulo moreira
Lembrou-se - haviam feito amor há poucos instantes.
- Foi bom para você também?
- (cabeça cai, como quem concorda)
Cada um virou-se para seu lado e adormeceu. Fazia uns quarenta minutos, deu-se conta. Ele demorava e ela ouvia mais alguns barulhinhos. Vestiu uma roupa, preguiçosa, e foi para a sala ver o que acontecia. Seria alguma dor?
Na sala iluminada apenas pelo abajur, viu o marido já vestido, sentado à mesa de jantar, semi-curvado sobre um papel. Ao seu lado, a pequena mala. O barulho metálico que a acordara era o das chaves do carro que haviam caído.
- Onde você vai? Num baile? Morreu alguém?
- Sim, nosso amor dançou e eu morri. Adeus.
Margô esfregou os olhos e dirigiu-se ao banheiro para lavar o rosto. Só podia estar sonhando. Água no rosto, mesmo em sonho, ajudaria a acordar. Desta vez, não ajudou. O cenário parecia o mesmo. Olha no espelho, vê sua patética figura despenteada e murmura baixo:
- Margareth menina, vai precisar aumentar a fluoxetina. Agora deu para delirar! Vai deitar que amanhã tem aula de história da Profª Margô no Colégio Moreira Drummond!
Retornou para o quarto, deitou-se, beijou e abraçou o marido ao lado. Só então notou que o rosto do marido estava frio e que não costumava ter a lisura e a maciez da fronha de cetim.
- Benhêêêêê...
O Benhê estava na porta do quarto, com a luz por traz a lhe detalhar os contornos. Homem alto, bela postura, elegância e firmeza de gestos. Por anos e anos, ela lembraria daquela imagem, como uma cena surreal.
- Carlos... o que houve?
- Um dia, me dei todo a você. Entreguei meu corpo e minha alma – puros, sem limites. Meu coração te pertence, e sei que não o terei de volta jamais, pois que coração dado não se pode ter de volta. Uma vez entregue, infinitamente entregue.
- Diz isso e vai embora? Onde está o homem que minutos antes dizia ser meu escravo?
- Posso me fazer servo. Ninguém mais o pode.
- Enlouqueceu? Você é o meu amor.
- Sim, sou seu amor e aquele é o seu vaso - na sua sala. Quebre-o e, se puder, suas lembranças também. Fique bem,amor!
- Um pedido, Carlos, apenas isso. Dança aquela música comigo?
Rodaram pela sala fria por horas, beijando-se e abraçando-se com desespero - ao som daquela música caliente.
Saiu na névoa do dia por raiar sem olhar para traz, diante da incrédula Margareth, cuja cabeça girava e girava sem nada entender. Dez anos. Lembra-se do papel na mesa da sala de jantar, imagina uma carta de despedida, mas ao invés disso, descobre a prova de uma sua aluna, sob a luz do abajur:
"... mesmo livres, alguns permaneciam junto a seus senhores, fiéis e agradecidos pelo carinho recebido por aqueles que os tinham por seres humanos. Pela grandeza de seu amor e não por escritura de posse. Permaneciam em seus lares até o fim da vida, trabalhando com dedicação e desvelo. Uma escravidão voluntária e, por isso mesmo, doce escravidão - diziam. Sobre os títulos de propriedade, o tempo deu a resposta..."
Arrasta-se até o quarto e joga-se sobre a cama. Sob efeito dos calmantes, finalmente dorme. Depois de uns breves minutos de sono, acorda assustada outra vez. Feito um Zumbi.Tem novamente a estranha sensação de que barulhos de correntes a acordaram. Do apartamento, parece exalar um cheiro de cafezinho da fazenda.
texto: paulo moreira