sábado, 28 de junho de 2008

honestidade

Primeiro vem a atração mútua. Vêm, também, as palavras que escorrem tão naturais quanto sentir fome ou piscar os olhos. Nessa mistura mágica, vêm juntas todas essas coisas inexplicáveis que só o amor entende. Palavras e atitudes brotam belas e criam, aos pouquinhos, a proximidade de pensamentos e de ideais. Esse é o início do encaixe das pecinhas. Assim nasce o amor.
Descobrimos maravilhados no outro a coerência total no falar, agir e pensar. Mesmo nas confissões mais difíceis, a sinceridade prevalece e é como um concreto firme que alicerça e dá segurança ao amor. É aquela certeza que não se explica, a cumplicidade que nasce do saber que no outro coração existe, antes de tudo, honestidade. Sinceridade.
Aliás, muitos consideram honestidade uma qualidade. Longe de ser qualidade, nada mais é que uma obrigação. Aos sermos honestos não estamos fazendo nada além do que se espera de nós. É o mínimo que se pode querer de um ser humano. Ao encontrar uma carteira e devolvê-la, ninguém torna-se anjo. Apenas sabe que enxerga bem o suficiente para vê-la e devolvê-la. Enxerga bem de toda forma, se assim o faz.
A confiança plena em outra pessoa é fundamental para ser feliz. Sabemos que em nada acreditaremos sobre algo que se refira a ela, sem seu pleno assentimento e aval. E essa transparência no agir ensina a importância da compreensão, da tolerância, do entendimento e, se for o caso, do perdão. Não há perdão sem esquecimento honesto; não necessariamente do fato, mas do sentimento.
No amor, honestidade é se desnudar perante o outro sem medo. É tirar a roupa do corpo e da alma, sem sentir vergonha por haver se entregado por completo. São os gemidos loucos e o rosto contorcido, deformado pelo momento do êxtase verdadeiro, para a volta quase imediata do sorriso de quem sabe que valeu a pena. O imediato apego à paz dos amantes. Contar os segredos dos pensamentos mais íntimos. É o procurar palavra que se encaixe naquele sentimento impossível de ser desenhado. Dizer dos sonhos que vão se realizar porque lutaremos por eles e dos que não irão se realizar, pois que, precisam continuar sonhos e assim deve ser. É o pular no abismo desconhecido, pela simples confiança no outro que chamou:
- Vem. Pode vir!
Podemos confiar demais e ter dúvidas. Não é a dúvida da sinceridade do outro. Pode ser sobre coisas externas ou até uma dúvida sobre nosso eu. Nosso sentir. E isso é uma coisa muito delicada, pois não coloca em xeque a honestidade dos dois, mas pode acabar com uma relação. Pode ser um golpe sem volta.
Se a pessoa que você ama usa toda a sinceridade que possui e, num certo momento, expõe uma dúvida sobre um amor do passado, isso machuca. Por mais honesto e humano que seja, crava feito punhal. E coração em dúvida agride sem perceber. Critica cada ação sua por, inconscientemente, comparar.
Isso fere como lâmina afiada porque não há defesa. Não existe como fugir. Não há como acusar de insinceridade. É um fato diante de nós e fatos são fortes demais.
Paradoxalmente e para nosso desespero, sabemos que na dúvida posta, existe acima de tudo, a honestidade do outro, e essa clareza volta-se cruel contra todo o amor que sentimos. É semelhante ao contar para o vizinho que ele possui apenas uma semana de vida, pois, por acaso você leu isso num relatório do médico. Uma sinceridade doída e fatal. Mas não deixa, afinal, de ser uma verdade.
É quando a honestidade te corrói. Te mata aos poucos. Porque você sabe que, uma vez que a pessoa amada não mente, está te expondo a receber um carinho que não necessariamente te pertença por inteiro. Te deixa sem saber se o corpo que você recebe é o mesmo do pensamento a quem se dirige. É te deixar sem a certeza de que arrumou o quarto para os dois. É a dor de saber que amar não foi o bastante. Ou, ao menos, o suficiente para que dúvidas jamais surgissem.
A verdade do outro é cruel em todos os sentidos, porque além de tudo, deixa a culpa de seus próprios erros. Da pessoa, não houve ânimo de ferir. Apenas honestidade.
Só te resta então, entender e admirar a atitude desse amor que te foi tão precioso. E ser sincero principalmente consigo mesmo. Nada a fazer. Talvez, dopar os sentidos do coração para que, como um animal condenado, sinta dor menor ao morrer.
Carregar consigo o consolo de ter sido tão maravilhoso, por ter sido tão verdadeiro. Honesto.
Saber que, por conhecer a si mesmo e seus limites de aceitação, honestamente, o melhor é partir.
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texto: paulo moreira
imagem: tela à óleo - "casal" - maria de lourdes moreira

sexta-feira, 27 de junho de 2008

simplesmente feliz

No meio da noite uma vontade imensa de dar risadas. Passaria despercebido, não fosse uma sensação tão intensa. De repente, tudo ficou bonito e comecei a sorrir para mim mesmo, para tudo à minha volta. Até o vôo de um inseto virou balet. O coração se encheu de amor e ficou pulsando como aqueles celulares com tremedeira.
Num instante, uma vontade imensa de aumentar o volume daquela música alegre e ficar gesticulando sozinho, orgulhoso com o próprio movimento das mãos sedentas de movimento e ritmo. Não entendendo nada, começo a brincar com o próprio pensamento.
Fosse contar para alguém, diria que fiquei procurando uma fumaça misteriosa que teria entrado pelos vãos da janela. Talvez alegar que os anjos resolveram fazer baile na minha casa, chamando-me para dançar o funk das asinhas.
Drogas, não uso. Só posso contar com o meu pensar. Que seria isso?
Uma felicidade sem tamanho toma conta de tudo. Do corpo, do pensamento, do coração, do mundo. Coisa de nenê que dá aquela gargalhada gostosa diante de um simples aceno. Sentimento de ter ganhado o primeiro beijo; de primeiro amor. Alegria na alma com vontade de dançar e pular.
Vontade cantar parabéns a você, do jeito mais ridículo possível. Liberdade na alma, lembrando todas as pessoas queridas sorrindo. Não apenas essas, mas todos os seres do mundo. Como se alegria, nessa noite fria, fosse vírus de influenza modificado. Muito esquisito.
Desejo de dar as mãos para alguém e sair correndo junto, sorrindo. Penso que posso estar morrendo e fiquei feliz porque não vou mais precisar de automóvel; que daqui para frente irei onde meu pensamento mandar num piscar de olhos. Bobagem, não estou morrendo não. Só se estiver morrendo de amor, mas fosse isso, estaria com o pensamentos fixo em alguém e isso não é o que acontece. Não penso num alguém em especial. Alegria mais esquisistranha. De onde vem isso? O ar ficou contaminado com alguma substância?
Consigo imaginar um mundo de crianças felizes, de pessoas plenas, de amizades pulando como pipocas na panela, de gente se amando. Nem vi o céu, mas deve estar lindo como nunca.
Desejo de amor, de paz, de proximidade. Vontade registrar esse momento em cartório.
Pensando em médicos e enfermeiras - desocupados pelos corredores de hospitais vazios -contando piadinhas de humor claro, enquanto os funcionários da portaria, sonados, ficam com a cabeça pescando, à espera dos que não virão mais, nunca mais. Delegacias vazias. Advogados brigando por um lugar em alguma gangorra ou gira-gira, dentistas sem perfumes de resina de dentadura e professores humildes.
Uma mesa comprida com centenas de pessoas comendo sardinha, pão e vinho ao meu lado, com aquela vontade. Tipo santa ceia sem crachá.
Estado de êxtase. Sorriso com jeito de coceira, com jeito de amar um mundo recém-nascido.
Prefiro imaginar que a causa seja mesmo a chegada dos anjos. Só pode ser. E ficar pensando que a vida é um presente. Esta, a próxima e mais outra.
Bom parar de pensar. Esse estado de euforia pode ser muito fugaz, talvez. Decidi - não vou pensar mesmo. Mas, vou confessar uma coisa:
- Não estou com vontade parar tão cedo. É tão bom ser bobo e estar simplesmente feliz!
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texto: paulo moreira

domingo, 22 de junho de 2008

aqueles bailes


Naquele tempo a gente parecia que tinha um ritual de fim de semana. Era, no sábado, o baile do Monza e no domingo o baile do Juventus. E todos, garotos e garotas, iam com suas turminhas.
Havia uma rivalidade acirrada entre o pessoal do nosso bairro, a turma do 7, que era quem morava perto do Clube 7 de Setembro da Água Rasa e o pessoal do Vila Invernada, o bairro um pouco mais acima. Desta forma, acontecia que, no sábado, os garotos do Vila davam em cima das meninas do 7 e vice-versa. Nada mais lógico, porque a fruta mais distante sempre é a mais saborosa, claro. E frutas saborosas costumam causar desentendimentos. No domingo, o baile do Juventus era mais democrático, pois ficava na Moóca, então considerado por nós como território neutro.
O Clube Monza, nada mais era que um pavimento no andar superior de uma fábrica e muito pequenino para ser chamado “clube”, mas era sempre repleto de gente e as ruas dos arredores ficavam lotadas de automóveis no sábado à noite. Apesar de pequeno, todos gostavam muito, por ser bem divulgado e possuir alguns acessórios que todos adoravam - luz negra, globo de espelhos e luzes bem fraquinhas.
As seleções de músicas eram muito badaladas e tocava-se muito Bee Gees, Bread, Creedence, Beatles e coisas do gênero, nas músicas lentas. Led Zeppelin, Deep Purple, Black Sabath e Grand Funk eram as sensações das rápidas dançantes. Rolava também, como não poderia deixar de ser, um Yes, para aqueles que já tinham dado um tapa num baseado e viajavam na santa paz do peace and love – estes, pra lá de Bagdad.
Todo mundo tem suas noites de terror e numa dessas noites lá estava eu, completamente desprovido de amigos da turma do 7, numa maravilhosa seleção lenta, grudadinho com uma moreninha que a gente adorava dançar. Ela não empinava a bunda pra se esquivar e permitia o livre passeio das mãos, que tocavam seu corpo com a competência de um Rick Wakeman nos teclados.
No meio da seleção, sinto um toque em meu ombro e viro-me para saber do que se tratava. Era um já conhecido rival de bailes, que me alertava:
- Essa garota é minha maninha...
Sabendo onde ele queria chegar, perguntei à garota:
- Você é irmã dessa coisa?
E ela:
- Eu não, Deus me livre!
Então, o garoto deu o bote:
- Irmãzinha de consideração, cara!
Não iria deixar de dançar com aquela mignonzinha, pelo simples fato de um idiota, cheio de amigos no baile, querer encher de ciscos a minha vida. E respondi sorrindo e esperto:
- Sua mamãe também é minha consideradinha. Aliás, estou com saudade dela.
E continuei minha dança todo feliz, mas já sabendo o que me esperava.
Nem dancei mais com a mesma menina. Exatamente por saber o que viria, a todo momento, ia na janela e olhava lá embaixo. Via cada vez mais garotos de cara feia olhando para cima. Não demorei muito para planejar uma estratégia. Ficaria ali até o fim do baile, pois lá dentro estaria protegido e, com certeza, eles esqueceriam rapidamente do dentuço petulante que difamava mães alheias.
Tinham uma memória de elefante.
Perceberam que eu não sairia dali tão cedo, até porque pedi uma cerveja proibida para os meus 16 anos. Nunca uma cerveja durou tanto tempo. E a montanha veio a Maomé.
Fizeram uma fila dupla à minha frente e o comandante da tropa, atravessou entre seus perfilados e, com o dedo em meu rosto, ordenou:
- Fale agora o que disse da minha mãe!
Pensei rapidamente e percebi que qualquer estratégia rimaria com tragédia. Mostrando-me calmo, segurei firme na minha padroeira de momento – a santa garrafa – e disse ao garoto, com a firmeza e o olhar de tigre mal humorado:
- Se eu disser que falei de sua mãe, vou apanhar. Se disser que não falei, vou apanhar. E, se disser que nada falei, vou apanhar também. Só um detalhe: De você não apanho.
E acertei a garrafa de cerveja bem no meio da cabeça dele.
Nunca apanhei tanto em minha vida. Depois de levar muitos socos, catiripapos e pés-de-ouvidos cai no chão e me encolhi enquanto levava chutes. Até valeu a pena, porque num instantinho, já estava desmaiado.
Acordei no pronto socorro do Tatuapé, com uns pontos no braço e todo amarrotado. Até o espírito doía. O alivio da dor foi ver o meu rival com a cabeça toda enfaixada e a notícia que levara uns 12 pontos. Sem contar a satisfação de saber que garota alguma iria querer dançar com aquele careca bobalhão tão cedo.
Como éramos menores, o investigador de plantão no pronto socorro, sabedor que menor de idade só dá camisa suada, conformou-se apenas com uma bela bronca. E nos dispensou.
O domingo amanheceu. Na saída, os dois com caras de patetas olhavam um para o outro. Agora, já sem qualquer ódio, ele então me diz:
- Puxa, que bobagem nós fizemos. E tudo por causa de uma menina bem fuleira; de uma dança.
Pensei bem. Ele tinha razão, não havia o que discutir. Então, respondi displicente:
- É mesmo. E olha que a Rosilene nem merece toda essa encrenca. Mais parece pia de água benta; todo mundo põe a mão. Sakatrapa! (sakatrapa era uma versão nossa de menina fácil).
Indo para a casa, camisas todas sujas de sangue, ele lembra:
- Hoje tem domingueira no Juventus. Você está a fim de ir?
- Vamos nessa. No Juventus tem cada gatinha...
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texto: paulo moreira
imagem: zurab kaisidi

terça-feira, 17 de junho de 2008

mudanças

Imagine estar olhando um planeta que, em certo momento, começa a entrar num processo de autodestruição. Com movimentos semelhantes a uma convulsão, até que numa enorme explosão, seus pedaços se espalhem pelo espaço.
Imagine agora a sua vida; o seu universo. Tente enxergá-la como um planeta. Veja os rios cristalinos correndo em suas veias e os oceanos cheios de vida que te pertencem. Perceba em si seus vales e montanhas cobertos de flores e árvores. Animais correndo livres entre suas planícies, cujo gado pasta tranqüilo sob o sol que te banha pela manhã. Olhe o lago tranquilo da tua paz repleto de peixinhos coloridos. Veja as cidades que você construiu em si; os edifícios de seus planos, a luz do teu trabalho e as obras do teu amor. Sua família, seus amigos. Imagine esse planeta que é você.
Só que nós não somos estáticos, assim como os planetas não o são. Queremos e precisamos mais. O tempo todo vamos modificando as nossas paisagens. Melhoramos algumas, construímos outras e os erros cometidos por nós ou por outros, acabam poluindo nosso pensar, criando guerras íntimas, matando paisagens de sonhos e desmatando nossos sentimentos. Por vezes, quase chegando a nos transformar em completos desertos.
Com todos os problemas que vivemos e apesar deles, sentimo-nos seguros nesse nosso mundinho. Vamos mantendo tudo que o compõe porque, seja como for, é a nossa casa e refúgio. É nesse planeta de louca geografia chamado Nós Mesmos que vivemos e conhecemos cada detalhe.

Independente de enxergarmos, certas coisas em nós precisam ser mudadas e algumas extirpadas. É o interminável espaço de tempo que antecede o novo. É quando chega a época dos terremotos da alma e tudo para nós entra em colapso.
Nada funciona. O amor não vem ou se desfaz. As crises financeiras se sucedem; vêm a depressão, as doenças, o dar adeus a seres queridos, o contínuo perder e perder. Em todos os sentidos. Chegamos por vezes, à beira do desespero, senão nele.
Em meio a todo esse caos, fica difícil notar que tudo isso é pela simples razão de haver chegado o momento de mudar. E que nem sempre essa mudança será determinada por nós ou sob nosso controle megalomaníaco. Quase impossível aceitar.
O universo é energia e movimento, com suas próprias regras, e tem uma ordenação que nossa condição de planetinhas não nos permite sempre entender. A um pensamento de Deus, o Universo vibra. Por isso tudo muda.
O pinto precisa romper o ovo para vir à vida. O feto precisa ser expulso de seu lugar quente e seguro e a planta só cresce quando rompe a terra. As grandes crises no mundo surgiram sempre em que foi preciso mudar. Civilizações inteiras tornaram-se pó. A inacreditável queda do Império Romano aconteceu e problemas menores afetaram o mundo.
Em tempos modernos, acredito que seria o momento de lembrarmos, por exemplo, que a grande depressão dos anos 30 não se resolveu através de aviões americanos pulverizando fluoxetina sobre a Terra. Pode parecer engraçado, mas estou querendo dizer que tudo chega a um ponto que explode e se reordena por si mesmo.
Imagine, por fim, que é chegada a hora de um ser humano explodir e se fragmentar em pedaços, tal qual aquele planeta que falamos.
Os braços do Criador, assim como deram outro destino aos fragmentos daquele planeta, voltam-se para nós e repetem o que acontece em absolutamente tudo no universo.
Novas e velhas peças voltam a se encaixar com uma precisão que impressiona. Tudo passa a fluir e gerar coisas boas. Vem o amor, novos jardins se formam e os velhos rebrotam. A água pura e cristalina volta a fluir nos rios. Nossos oceanos recomeçam seu movimento das marés. Os animais correm soltos e os frutos retomam seu mel sabor. Gaiolas se desfazem e os pássaros de nossa imaginação voam livres na imensidão do céu. Estamos prontos para ressurgir em nossa galáxia, talvez até mesmo na condição de estrelas.
Dá angustia saber, que mesmo querendo, a família Robinson não conseguiu retornar à Terra, embora tenha lutado tanto para isso. Esquecemo-nos que são felizes viajando sempre e sempre. Jamais irão voltar. Não teria sentido.
Na verdade, sentimos medo dos alienígenas que podemos encontrar nesses novos rumos que a vida está nos presenteando. Demoramos para nos conscientizar que tanta dor e sofrimento foi muito mais pelo medo do desconhecido, que qualquer outra coisa.
E, de repente, como que vinda de algum outro sistema estelar, surge em nós, a paz.

texto: paulo moreira