Uma p
equena frase foi o estopim de tudo. Foi o desabafo de uma namorada:
- Você não precisa de uma namorada; você precisa de uma mãe!
Aquilo ficou martelando em minha cabeça dias e dias. Ia para meu quarto e ficava pensando no que ela havia dito. Tinha razão por tudo. Pela minha dependência, pelos caprichos, por nada saber da vida ou de qualquer dificuldade. Aquela frase atingiu-me em cheio, bem no meio do alvo. E tomou conta daqueles dias dos meus vinte e poucos anos.
De tanto olhar a mim mesmo e tentar enxergar a realidade, comecei a perceber que buscava nas memórias e nas sensações a razão daquilo tudo. Até que consegui enxergar. Era transparente como a água. Como não havia visto antes?
A primeira coisa foi ver-me tomando banho. Meu Deus, como eu era ridículo tomando banho. Pela manhã, eram banhos de mais de uma hora antes de ir para o trabalho. O ridículo era a forma como o fazia. Tomava banho de chuveirinho, agachado e curvo, com os braços encolhidos para dentro e com a água quente escorrendo pela boca e pelo corpo. O escuro dos olhos fechados, momento de maior paz e tranqüilidade.
Minha mãe, por vezes, batendo na porta seguidamente para que não perdesse a hora, sem que sequer ouvisse nada. Pura felicidade, puro êxtase.
Para, em seguida, ir para o trabalho com uma agitação sem igual, irritadiço e incomodado com o barulho dos automóveis e com a agitação. Era como se fosse durante todo o trajeto sendo chacoalhado, dirigindo nervoso e inquieto. Frio. Muito frio.
A primeira percepção foi a de posição fetal e logo em seguida a das sensações que, então, tomaram o vulto de lembranças. O grande problema de enxergarmos isso, talvez seja porque no útero materno não haja acontecimentos novos ou diferentes a cada momento. Lembrava-me, lógico, apenas do que os sentidos podiam perceber. A temperatura da água, tal qual o líquido que me envolvia, a escuridão e o som apenas das entranhas de minha mãe. Calor, segurança, proteção.
Difícil assimilar a situação. Mães foram feitas para os filhos saírem e não mais retornarem, afinal de contas.
Nos dias subseqüentes, as lembranças mais e mais claras e as perguntas à minha mãe para tentar confirmá-las. Como as confirmações vinham positivas, as perguntas aumentavam.
- Mãe, por que me chacoalharam tanto, logo que nasci? Por que não abria a mão esquerda?
- Filho, como lembra disso? Depois de duas meninas, você foi o primeiro filho homem e seu pai explodiu de felicidade. Te pegou ainda pelado, enrolou num cobertor e foi te pesar no bar. Você nasceu no final de março – outono – e, três meses depois, no inverno, não conseguia te vestir as luvinhas porque você não abria a mãozinha esquerda de jeito nenhum. Mas, como lembra essas coisas?
Só que eu lembrava muito mais. Lembrava-me tudo - dentro e fora dela. Entendia agora a minha agitação ao sair do útero do meu banho. Meu pai atravessando, comigo enrolado num cobertor, a Rua do Orfanato - onde tinha o bar quase em frente a nossa casa - agitadíssima e cheia de automóveis, barulhos… Todas as cenas de minha vida tornaram-se muito claras.
Com dois anos, brincando no chão do bar, enquanto alguns fregueses me chamavam de Marcelino Pão e Vinho. O apelido era porque, em 1958, o ano em que nasci, o garoto que havia protagonizado o filme estivera no Brasil. Em 1961 o filme era sucesso que passava no cinema ao lado, o Cine Fátima. Todos me achavam muito parecido com o tal Marcelino, um tipo de menino de Deus. Depois, descobri que o tal menino ator (de Pablo para Paulo é um pulinho) havia nascido também num mês de março.
O ator Pablo Calvo Hidalgo nasceu em Madri, em março de 1948 e faleceu em fevereiro de 2000, aos 51 anos de idade, em conseqüência de um derrame cerebral.
Chamavam-me Marcelino Bom Menino, bem diferente daquele, mas também menino. O apelido durou até uns cinco anos. A propósito, ainda não faleci.
Em minha vida, o retorno a situações vivenciadas foi sempre uma constante. Com três para quatro anos já começava a ler e aos quatro escrevia também. Tudo como se, ler e escrever, fosse uma lembrança. Sempre foi assim comigo. Tudo como um filme já visto.
Só de uma coisa não conseguia lembrar. Do momento exato em que havia nascido. Até que num desses esforços de concentração, numa noite estranha, minha mãe entra no quarto e me pega gemendo e sufocado como se alguma coisa me apertasse o corpo todo, o pescoço e, tirasse o fôlego. Os olhos ardendo com a chegada da luz e o alívio do momento passado.
Pronto. Havia lembrado.
Todo esse processo ajudou-me muito na compreensão de mim mesmo. Na visão do mundo e do amor. Os movimentos podendo gerar vida, alegria, trabalho. Dos abraços entre amigos. Do calor vindo dos corpos juntos, nas entranhas de uma mulher e de mim mesmo. Do sentir os seios de uma companheira alimentando meu coração, num ritual misto de sensualidade e apego espiritual. Da necessidade quase compulsiva de querer tocar as pessoas. Do frio nos momentos de solidão; um frio físico, mas também do fundo do espírito. Dessa experiência de perceber a conexão entre meu ser e o universo num sentido mais amplo.
Lembranças de outras vidas vieram depois.
Uma das coisas mais marcantes foi mesmo essa do apelido Marcelino Bom Menino. Por vezes, sinto essa coisa boba. Algo como crer que, tal aquele menino com quem Deus conversava, pudesse ter mãos que curassem, trazendo alívio e afagos. Que, coincidentemente, pudesse ter a mesma sorte. Se não minhas mãos, ao menos, minhas palavras.
texto: paulo moreira