terça-feira, 5 de agosto de 2008

lentes na escuridão

Acordou e não conseguiu tão rápido cair em si. O sonho houvera sido muito marcante e ainda levava consigo as sensações dele. Sonho de beijos molhados e rostos desconhecidos; na seqüência, ruas vazias e a névoa de uma noite de abandono.
Apalpou ao lado procurando os óculos, enquanto os pés procuravam os chinelos. Encontrou-os pela automação diária dos hábitos. Levantou-se e tateou até o interruptor. A luz repentina invadiu os olhos que arderam. Resolveu não acender mais nenhuma e ficou arrastando-se pela casa. Com a mente não atinando em nada, tropeçou no tapete. Tropeços são parte da vida.
Na escuridão da sala tentava pensar em algo, mas estranhamente nada surgia para poder pensar. Ainda estava sob a emoção do sonho, do qual só trazia resquícios de sensações procurando a lógica da letargia. Nada. No sofá, apenas vultos dos móveis e um silêncio desafiador. Madrugada.
Sem fome, passou pela cozinha indiferente e andou feito um zumbi pela casa. Foi e voltou várias vezes. A mente ainda vazia. Só restava voltar para o quarto e continuar o sono.
Entrou, apagou a luz e deitou-se na cama. Não havia tirado os óculos e só ao virar-se para o lado sorriu do detalhe bobo. Sentiu-se idiota ao tirá-lo e recolocá-lo umas três vezes para comprovar o óbvio. No escuro total do quarto não fazia a menor diferença tê-lo ou não.
As lentes não eram menos lentes nem seus olhos menos míopes. Assim como o armário, o quadro e a janela eram os mesmos. Pensou na tolice que lhe guiava os sentidos e sentiu-se como um nenê pensando diante do chocalho no berço. Na escuridão total, nada faz diferença.
Passou pela cabeça o nome daquela pessoa e, susto maior, nenhuma imagem surgiu. Imaginava sempre as noites que passaram juntos e das quais trazia as lembranças que, hoje em especial, teimavam em não surgir.
Deu-se conta dos tempos que ali passara e sempre que fechava os olhos vislumbrava as cenas do que fora amor. Noites agitadas em que acordava com o corpo chamando por esse alguém; em que as próprias mãos passeavam pelo corpo inquieto, como fossem capazes de trazer a presença de um dia. Dos beijos dados no próprio braço, tentando reproduzir o calor daquele corpo, ficava a desilusão da ausência.
Tinha amado como ninguém jamais ousara. Houvera abandonado tudo em razão da luz daquele amor. Abandonara, talvez, a própria vida em direção a ela. Dos momentos sentia a falta; desde cada beijo ou carinho trocado, até o fundo da alma cicatrizada pela distância muita e o desprezo mudo.
Até então, bastava fechar os olhos e pensar naquele amor, para que no escuro e na solidão de seu quarto surgissem aquelas paisagens iluminadas de lindas cenas indecentes. Vinham os planos a dois, as conversas trocadas, as esperanças. A vida tornava-se luz.
Mas, naquela noite não era mais assim.
Sabia que, a partir dela tudo estaria ali, a exemplo de seus armários, janelas e objetos. Embora ali estivessem - seus olhos, suas lentes e o resto do quarto não seriam suficientes para resistir à ausência de uma nesga de luz que fosse. Era impossível enxergar alguma coisa.
Lembrou-se de ter dito um dia que a ausência do ser amado fazia sua vida tornar-se noite. Tinha razão.
Só então caiu em si.
Na mesa de cabeceira faltava alguma coisa. Talvez um porta-retratos. Mesmo que apalpasse, acendesse a luz ou colocasse os óculos não o veria mais, mesmo que estivesse em outro lugar da casa.
Seu coração foi retirando pouco a pouco, entre tantos desacertos e desencontros, esse alguém de dentro de si.
Não era necessário mais pensar. Era suficiente saber que, mesmo que poderosas lentes fossem colocadas em seu coração, este não enxergaria mais o amor que havia ficado em algum lugar do caminho, onde as estrelas cintilavam ou onde o sol nascia senhor da Terra. Sem luz alguma.
Virou-se para o lado e dormiu diferente dos dias em que dormia para poder sonhar. Dormiu sem porquê; nem feliz, nem infeliz. Dormiu para permitir que o dia amanhecesse.
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texto: paulo moreira
imagem: pedro moreira

8 comentários:

Pelos caminhos da vida. disse...

Olá!

Visitando pela primeira vez.

Gostei.


beijooo.

Sonia Regly disse...

Paulo,
Postei um lindo poema seu lá no Blog, ficou muito lindo.Vai lá conferir!!!!

Josemar Pires Ribeiro disse...

Oi Paulo..
Fiquei muito contente com seu ultimo comentario em meu blog.... grato.Um elogio vindo de um grande autor como vc... é muito importante..
Desejo muito sucesso em seu livro..
e que muitas luzes se acendam em sua vida.
abraços

MARIPA disse...

Olá, Paulo!

Cheguei aqui pela mão da Lucia...
Gostei e volto mais vezes para ler mais...

Parabéns pelo seu livro que sei vai lançar esta semana!

Beijo carinhoso.

Daniella Paula disse...

Obrigada pela visita!

Seu perfume é feito de sensibilidade!!!

Cheiros!

Anônimo disse...

Oi Moço:
Ando naquela fase que costumo dizer que a "casca ta fininha" e a emoção fica a for da pele... me emocionei muito talvés por ter vivenciado algo tão próximo do que a Crônica diz: "Era suficiente saber que, mesmo que poderosas lentes fossem colocadas em seu coração, este não enxergaria mais o amor que havia ficado em algum lugar do caminho, onde as estrelas cintilavam ou onde o sol nascia senhor da Terra."
abraços fraternos

Rai pires disse...

oi Paulo desejo muito sucesso com o seu livro.Ler vc é indispensável.Abraços Raimundo pires

Unknown disse...

Oieee Paulo....estou te visitando pela primeira vez.
Fiquei feliz em saber que virastes escritor agora...a Helena me contou.
Parabéns pelo lançamento do seu livro.
”Amizade é você encontra uma pessoa que olha na mesma direção que você, compartilha a vida contigo e te respeita como você é. Uma pessoa com a qual você não precisa ter segredos e que goste até dos seus defeitos. Basicamente, é aquela pessoa com que você quer compartilhar os bons momentos e os maus, também”
Saudades de vc meu amigo!!!!
Nâna