sábado, 25 de outubro de 2008

Cativeiro

Um pequeno som acordou-a. Tinha certeza: havia alguém na sala. Ao tentar cuidadosamente acordar o companheiro, para não causar e nem demonstrar pânico, notou que ele não estava ao seu lado. Suspirou aliviada.
Lembrou-se - haviam feito amor há poucos instantes.
- Foi bom para você também?
- (cabeça cai, como quem concorda)
Cada um virou-se para seu lado e adormeceu. Fazia uns quarenta minutos, deu-se conta. Ele demorava e ela ouvia mais alguns barulhinhos. Vestiu uma roupa, preguiçosa, e foi para a sala ver o que acontecia. Seria alguma dor?
Na sala iluminada apenas pelo abajur, viu o marido já vestido, sentado à mesa de jantar, semi-curvado sobre um papel. Ao seu lado, a pequena mala. O barulho metálico que a acordara era o das chaves do carro que haviam caído.
- Onde você vai? Num baile? Morreu alguém?
- Sim, nosso amor dançou e eu morri. Adeus.
Margô esfregou os olhos e dirigiu-se ao banheiro para lavar o rosto. Só podia estar sonhando. Água no rosto, mesmo em sonho, ajudaria a acordar. Desta vez, não ajudou. O cenário parecia o mesmo. Olha no espelho, vê sua patética figura despenteada e murmura baixo:
- Margareth menina, vai precisar aumentar a fluoxetina. Agora deu para delirar! Vai deitar que amanhã tem aula de história da Profª Margô no Colégio Moreira Drummond!
Retornou para o quarto, deitou-se, beijou e abraçou o marido ao lado. Só então notou que o rosto do marido estava frio e que não costumava ter a lisura e a maciez da fronha de cetim.
- Benhêêêêê...
O Benhê estava na porta do quarto, com a luz por traz a lhe detalhar os contornos. Homem alto, bela postura, elegância e firmeza de gestos. Por anos e anos, ela lembraria daquela imagem, como uma cena surreal.
- Carlos... o que houve?
- Um dia, me dei todo a você. Entreguei meu corpo e minha alma – puros, sem limites. Meu coração te pertence, e sei que não o terei de volta jamais, pois que coração dado não se pode ter de volta. Uma vez entregue, infinitamente entregue.
- Diz isso e vai embora? Onde está o homem que minutos antes dizia ser meu escravo?
- Posso me fazer servo. Ninguém mais o pode.
- Enlouqueceu? Você é o meu amor.
- Sim, sou seu amor e aquele é o seu vaso - na sua sala. Quebre-o e, se puder, suas lembranças também. Fique bem,amor!
- Um pedido, Carlos, apenas isso. Dança aquela música comigo?
Rodaram pela sala fria por horas, beijando-se e abraçando-se com desespero - ao som daquela música caliente.
Saiu na névoa do dia por raiar sem olhar para traz, diante da incrédula Margareth, cuja cabeça girava e girava sem nada entender. Dez anos. Lembra-se do papel na mesa da sala de jantar, imagina uma carta de despedida, mas ao invés disso, descobre a prova de uma sua aluna, sob a luz do abajur:
"... mesmo livres, alguns permaneciam junto a seus senhores, fiéis e agradecidos pelo carinho recebido por aqueles que os tinham por seres humanos. Pela grandeza de seu amor e não por escritura de posse. Permaneciam em seus lares até o fim da vida, trabalhando com dedicação e desvelo. Uma escravidão voluntária e, por isso mesmo, doce escravidão - diziam. Sobre os títulos de propriedade, o tempo deu a resposta..."
Arrasta-se até o quarto e joga-se sobre a cama. Sob efeito dos calmantes, finalmente dorme. Depois de uns breves minutos de sono, acorda assustada outra vez. Feito um Zumbi.Tem novamente a estranha sensação de que barulhos de correntes a acordaram. Do apartamento, parece exalar um cheiro de cafezinho da fazenda.

texto: paulo moreira

3 comentários:

Daniella Paula disse...

Plac plac plac...
Muito Bom!

Um cheiro!

Unknown disse...

Muito Lindo Paulo!

PARA VOCÊ...
Quem tem amigos
Não é solitário, não é triste,
Não é abandonado,
É um ser humano feliz.
Assim como eu...
Por ter você sempre comigo ...
Te Adoro!

Obrigada pela visita, volte sempre,e...
tenha uma semana iluminada!
Beijão,
ESTRELA SELMA1

Uma aprendiz disse...

Olá

Já tinha lido, hoje voltei para ler de novo e deixar um recadinho.

Como sempre, muito bom.
Gosto muito dos seus textos. Parabéns!

abraço